VERTENTES DO TRABALHO FILOLÓGICO

MESA REDONDA: VERTENTES DO TRABALHO FILOLÓGICO
Coordenador: Sílvio de Almeida Toledo Neto (USP)


A anotação segundo Joseph M. Piel
João Dionísio, Universidade de Lisboa

Ignorada por um bom número de manuais de crítica textual na medida em que os seus autores a consideram exterior à edição crítica, a anotação constitui um aspecto merecedor de reflexão por várias razões. A anotação corresponde ao que não é formalizável no âmbito da economia e da representação do aparato crítico, por um lado, e também corresponde, por outro lado, ao resultado do impulso para a explicação textual (linguística, parafrástica, retórica, histórico-cultural, etc.)  que o editor sente como necessário em certas ocasiões. A análise da anotação constitui uma privilegiada porta de acesso ao que há de contingentemente histórico no trabalho filológico, podendo também ser reveladora do modo pessoal como um determinado editor entende em sentido amplo o trabalho filológico.
A este respeito, convém lembrar as cinco noções de “filologia” de que fala Ursula Bähler na biografia intelectual que dedicou a Gaston Paris. Segundo uma perspectiva universal, a filologia debruça-se sobre todos os traços materiais deixados por seres humanos à medida que a História se desenrola; numa perspectiva global, o objecto é mais reduzido, pois consiste apenas no conjunto de traços escritos; uma perspective lata, associada à visão alemã deste campo do saber, inclui a linguística, a filologia textual e a história literária; uma perspectiva estrita, ligada à visão francesa, compreende apenas a linguística histórica e o trabalho editorial; finalmente, a perspectiva chamada “metodológica” deriva da última, mas converte a filologia numa técnica passível de ser usada em diferentes terrenos do saber. 
Num percurso de progressivo afunilamento, diga-se que até na Alemanha a perspective lata perdeu preponderância durante a segunda metade do séc. XX e os estudos linguísticos e literários, antes ramos solidários da filologia, tornaram-se disciplinas autónomas. Nesta comunicação procurarei apurar como algumas destas perspectivas actuam no trabalho de anotação de Joseph M. Piel, o filólogo alemão que é também um dos mais importantes editores de textos portugueses medievais.
Piel apresentou em 1926 uma tese de doutoramento orientada por Wilhelm Meyer-Lübke, Die Mundart von Courtisols bei Châlons s. M.,  e neste ano começou a dar aulas na Universidade de Coimbra. Em 1938, sucedeu a Carolina Michaëlis de Vasconcelos na cátedra de Filologia Portuguesa. De 1953 a 1968 foi co-responsável pelo Departamento de Filologia Românica na Universidade de Colónia. Os anos 40 foram o período em que mais investiu na preparação de edições críticas, por coincidência todas dependentes de manuscrito único: os tratados de D. Duarte Leal Conselheiro e o Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda a Sela (1942 e 1944) e a tradução que o infante D. Pedro elaborou do De Officiis de Cícero (1948).
É a anotação destas três edições que tomarei em consideração como base para uma aproximação ao conceito de Filologia que Piel defendeu.

 

Crítica textual comparada: em busca de universais no processo de transmissão dos textos.
César Nardelli Cambraia, Universidade Federal de Minas Gerais

Uma das principais tarefas da crítica textual é a de identificar os padrões que regem as modificações que ocorrem no processo de transmissão dos textos, a fim de fornecer critérios mais seguros para a restituição de sua forma genuína. Diferentes tipologias para dar conta das modificações não-autorais (os erros) a que os textos são submetidos no processo de sua transmissão já foram propostas: podem-se citar aqui categorias tradicionais como omissão, adição, alteração de ordem e substituição, bem como categorias mais diretamente relacionadas ao processo de cópia em si, como erros visuais, mnemônicos, psicológicos e mecânicos.
Raramente, porém, se discute de que forma se manifestam as referidas modificações em diferentes tradições textuais: os erros que aparecem na transmissão de textos latinos manifestam-se da mesma maneira (em termos de tipos envolvidos e freqüência desses tipos) que os que se constatam na transmissão de textos românicos? há universais nas modificações que ocorrem no processo de transmissão de textos? Para discutir essa questão, fez-se a análise dos erros constatados no processo de transmissão de uma mesma obra, o tratado ascético intitulado Livro de Isaac, em diferentes tradições: latina, portuguesa e catalã.
Apesar de constituírem tradições com grandes singularidades entre si, possuem testemunhos múltiplos, o que viabiliza a investigação sobre padrões universais e particulares no processo de transmissão de Textos.

 

Edição  de documentos manuscritos baianos: autos de defloramento
Rita de Cássia Ribeiro de Queiroz, Universidade Estadual de Feira de Santana

A Filologia, em sua área de atuação mais antiga, trata da edição de textos, sejam estes de quaisquer naturezas ou períodos. Enquanto Crítica Textual, a Filologia se ocupa da conservação, restauração e preservação do patrimônio cultural escrito.
Seguindo-se nessa perspectiva, desenvolve-se no projeto de pesquisa “Estudo histórico, filológico e artístico de documentos manuscritos baianos dos séculos XVIII ao XX” a edição semidiplomática de diversos documentos que integram arquivos baianos, a saber: inventários, testamentos, queixas-crime de curanderismo, furto e de defloramento com o objetivo de trazer à tona tudo que encerram tais textos, ou seja, a própria memória, seja esta histórica, linguística, cultural.
Deste modo, editar tais documentos está concernente com as três funções propostas por Spina (1994): função substantiva, função adjetiva e função transcendente.  Para este trabalho, foram selecionados os autos de defloramento, lavrados no início do século XX, mais precisamente entre os anos de 1901 a 1909.
No decorrer do processo de edição, constatou-se que os autos de defloramento trazem informações valiosas sobre o comportamento da justiça, mediante o que apresentam os agentes judiciários, as vítimas e os réus. Os autos de defloramento são documentos jurídicos que relatam histórias de jovens defloradas, ou seja, que foram desvirginadas, com emprego de violência ou não.
Mas por que existem tais documentos? Os autos de defloramento, além de veicularem informações acerca do crime contra mulheres virgens, representam também o pensamento da sociedade brasileira dos primeiros anos da República, a qual prezava o progresso, sendo este aliado aos aspectos políticos, econômicos e sociais. Dentre os aspectos sociais havia um fator importante para o desenvolvimento de qualquer sociedade: o papel da família e a ordem social.
Destarte, pretende-se apresentar nesta comunicação a edição de três autos de defloramento, destacando-se as descrições intrínseca e extrínseca, os critérios para a transcrição e as leituras possíveis do teor dos textos. 

 

Documentos paulistas iniciais: edição e estudo de fontes manuscritas quinhentistas e seiscentistas
Sílvio de Almeida Toledo Neto, Universidade de São Paulo

Dentre os vários caminhos que pode tomar o trabalho filológico, está o da edição orientada para um manuscrito específico dentro da tradição. É um tipo de edição que interessa especialmente ao estudo histórico da língua, porque busca reproduzir com exatidão todas as características linguísticas e gráficas do manuscrito estudado. Há preocupação também com aspectos paleográficos, codicológicos e diplomáticos, indispensáveis para a compreensão mais minuciosa do mansucrito em relação ao contexto histórico e social a que pertence.
Para os tempos iniciais de povoamento da região da vila de São Paulo, a documentação manuscrita remanescente é muito escassa, crescendo notavelmente ao longo do século XVII. Esse acervo, em grande parte, não se apresenta até hoje em edição preparada segundo moldes filológicos, o que impossibilita o seu estudo sem a consulta direta às fontes.
No projeto Fontes para a História da Língua Portuguesa: edição de manuscritos dos períodos médio e clássico, que integra o projeto Para a História do Português Paulista, propomos editar e estudar um conjunto de manuscritos em português, lavrados durante os períodos médio (sécs. XV e XVI) e inícios do clássico (sécs. XVI a XVIII), da História da Língua Portuguesa. Os manuscritos paulistas, que compõem predominantemente esse acervo, são documentos de variadas espécies como, por exemplo, atas, cartas, certidões, escrituras e testamentos. Trata-se de fontes privilegiadas para o estudo linguístico por trazerem, geralmente explícitos, o local e a data em que foram lavrados, além do nome do autor (ou autores) intelectual e material.
Com o intuito de transcrever os manuscritos de forma a preservar-lhes os traços linguísticos originais, adotam-se normas semidiplomáticas, que interveem em aspectos como o desenvolvimento de abreviaturas, a uniformização de alógrafos e a indicação da conjectura. A intervenção de grau médio no modelo adequa-se aos objetivos do projeto, na medida em que o corpus reúne, em sua maior parte, originais – autógrafos ou idiógrafos – ou apógrafos únicos. Se a edição orientada para o manuscrito tinha particular importância quando não havia disponíveis boas reproduções fotográficas, hoje esse tipo de edição não perdeu a relevância, na medida em que busca trazer uma transcrição rigorosa e acessível ao pesquisador que não esteja familiarizado com a leitura de manuscritos de épocas passadas. Na presente comunicação, buscamos apresentar o projeto na etapa em que se encontra, refletindo sobre a fiabilidade que deve ter a transcrição para servir como testemunho de língua da época.