O PAPEL DA LÍNGUA FALADA COMO CONTRIBUTO AO ESTUDO LINGUÍSTICO NOS SÉCULOS XX E XXI

MESA REDONDA: O PAPEL DA LÍNGUA FALADA COMO CONTRIBUTO AO ESTUDO LINGUÍSTICO NOS SÉCULOS XX E XXI
Coordenadora: Maria Célia Lima-Hernandes (Universidade de São Paulo)


O estatuto do falado e do escrito para a pesquisa em mudança linguística
Angélica Rodrigues, UNESP-Araraquara
Sanderléia R. Longhin-Thomazi, UNESP/S.J. do Rio Preto

A partir das primeiras pesquisas sociolinguísticas (WEINREICH, LABOV & HERZOG, 1968) que, entre outras contribuições, apontavam a fala espontânea como o locus da mudança, dados de língua falada passaram a representar um campo de investigação inédito para o estudo da mudança linguística, que até então estava restrito às análises diacrônicas, a partir de textos de sincronias pretéritas. A possibilidade de estudar a mudança em progresso, principalmente a partir do confronto da fala de indivíduos de faixas etárias diferentes serviu, de certa forma, para dicotomizar a relação fala/escrita, na medida em que, para a sociolinguística, a mudança se inicia na fala e atinge a escrita só num estágio mais avançado de implementação. Dessa forma, a conclusão lógica para a presença de dada construção apenas na modalidade falada da língua podia ser indicativo de seu caráter inovador.
Contudo, a percepção de que as diferenças entre fala e escrita precisam ser analisadas à luz das circunstâncias comunicativas levou a discussão para o domínio dos gêneros ou tradições discursivas, do que resultaram propostas de análise fundadas na gradiência, e não mais na dicotomia, como em Koch e Oesterreicher (2007), que sustentam uma distinção escalar, de fronteiras pouco claras, entre o falado e o escrito. Para eles, as atividades sociais por meio da linguagem circulam por diferentes tradições de textos, numa escala cognitiva fundada na fala e na escrita ou, mais propriamente, numa oralidade e numa escrita concepcionais.
Nosso objeto de discussão está, deste modo, no estatuto teórico-metodológico dos dados de fala e escrita enquanto fontes para a investigação de fenômenos de mudança linguística, particularmente de fenômenos relacionados à emergência de construções complexas em português. Nossa perspectiva distancia-se de uma concepção compartimentada de fala e escrita, e aproxima-se de uma concepção fortemente relacionada com a circulação dos escreventes pelas práticas sociais. Dessa forma, reconhecemos uma indissociabilidade entre essas duas modalidades de enunciação, fato que licencia a apreensão no registro escrito de características da oralidade e, portanto, de características do tão pretendido vernáculo, o que permitiria flagrar aspectos mudança linguística. 

 

Funcionalismo e a proposta construcional
Mariangela Rios de Oliveira, Universidade Federal  Fluminense
Nilza Barrozo Dias, Universidade Federal  Fluminense

As mudanças linguísticas, em muitos casos, podem ser observadas como processos de gramaticalização ou como motivações em competição. Interessam-nos construções que, detectadas numa situação de uso, na modalidade falada, se apresentam quer no processo inicial que é a ‘fonte’ (A), quer no processo intermediário também com características de B, (AB), quer no processo ‘meta’, em que B se apresenta na forma gramaticalizada (HEINE, 2005, 2011). Para estudar as referidas mudanças, valemo-nos do pareamento forma e função, noção cara à análise construcional de Goldberg (2009) e de Traugott (2005).
Utilizamos, ainda, a proposta de Traugott (no prelo) acerca de elementos da pragmática que podem ser incorporados às mudanças semânticas pelas implicaturas, e, neste caso, podemos considerar a participação dos interlocutores no processo de gramaticalização das construções selecionadas. O trabalho compreende a análise de construções subjetivas e de construções verbais integradas por pronomes locativos no português brasileiro, especificamente nas falas mineira, carioca e fluminense, destacando, além da função sintática exercida pela oração matriz ou predicadora, o papel semântico-discursivo que a referida oração exerce em relação à sua encaixada subjetiva. Consideramos que: a) a modalização e a avaliação que emergem do contexto das construções subjetivas podem causar a mudança do estatuto sintático da unidade matriz; b) as estratégias de sub e de intersubjetivização, levando em conta a configuração morfossintática interna das construções verbais com locativos, motivam sua reanálise e gramaticalização. O material usado nesta apresentação é constituído de amostras de fala retiradas dos Projetos Discurso & Gramática (RJ), Fala Mineira, Juiz de Fora e arredores (MG) e Português em Uso (RJ).


Linguística baseada no uso: o papel de destaque da língua falada
Maria Angélica Furtado da Cunha, Universidade Federal do  Rio Grande do  Norte
Mário Eduardo Martelotta, in memorian

A virada teórico-metodológica da Linguística nas últimas décadas do século XX, consubstanciada na orientação de basear suas investigações em dados reais de língua, coletados em situações de interação sociocomunicativa, tornou imperiosa a constituição de banco de dados que fornecessem material para análise. Para atender a essa necessidade, foram organizados vários corpora que refletem a sincronia atual do português do Brasil e prestam valioso serviço como obra de referência. O termo Linguística Cognitivo-Funcional identifica uma tendência funcional de estudo das línguas, também denominada linguística baseada no uso (usage-based linguistics), cuja característica principal é analisar a língua do ponto de vista do contexto linguístico e da situação extralinguística. Essa abordagem é resultado da união das tradições desenvolvidas pelas pesquisas de  representantes da Linguística Funcional, como Talmy Givón, Paul Hopper, Sandra Thompson, Wallace Chafe, Elizabeth Traugott, entre outros, e representantes da Linguística Cognitiva, como George Lakoff, Ronald Langacker, Gilles Fauconnier, Adele Goldberg, inter alia (TOMASELLO, 1998, 2003).
Essas duas correntes compartilham vários pressupostos teórico-metodológicos, como a rejeição à autonomia da sintaxe, a incorporação da semântica e da pragmática às análises, a não distinção estrita entre léxico e sintaxe, a relação estreita entre a estrutura das línguas e o uso que os falantes fazem delas nos contextos reais de comunicação, o entendimento de que os dados para a análise linguística são enunciados que ocorrem no discurso natural etc.
A gramática é vista como representação cognitiva da experiência dos indivíduos com a linguagem, portanto ela pode ser afetada pelo uso da língua. Desse modo, a análise linguística deve levar em consideração, sobretudo, a língua falada, viva, locus da variação e da mudança linguísticas.

 

A língua em uso e o gatilho da mudança para construções correlativas
Marcelo Módolo, Universidade de São Paulo
Maria Célia Lima-Hernandes, Universidade de São Paulo

Para a evolução da gramática, reconhece-se a atuação de paradoxos (Givón, 2005) que, ao mesmo tempo que fazem repelir-se formas e funções revelando suas contrariedades, fazem sobrepor seus efeitos num mesmo resultado, aproximando-os. Em termos de usos, paradoxos podem interditar a presença de alguns usos na modalidade falada e, em outra instância, ampliando o espectro de opções na língua falada. Em concomitância, nota-se o rompimento de pares cristalizados para dar lugar a novidades combinadas, porém segundo um mesmo padrão de repetição formal no uso inovador. São os paradoxos típicos da mudança linguística, alimentados por processos sociocognitivos amplamente explanados por estudiosos da gramaticalização, o foco da discussão. Partimos do pressuposto de que a dinâmica interativa alimenta a gramática e frena usos em fotografias impressas, fazendo restar como uma opção a mais antiga forma, ao mesmo tempo em que produz em alta frequência conteúdos inovadores. Seriam as conjunções correlativas carcaças de um padrão cognitivo necessário à codificação de ideias? Ou seria um elo coesivo produtor de estabilidade semântica em níveis distintos de atuação? Evidenciamos que os pares correlativos conjuncionais nascem de processos conversacionais, abstratizados, empacotados sintaticamente e incorporados no sistema gramatical. A repetição, processo comum na língua falada, e a recursividade, processo comum nas situações comunicativas, seriam responsáveis pelo fortalecimento desses usos. O que permitiria esse fortalecimento, hipotetiza-se, é a manifestação de processos sociocognitivos com impacto na expansão dos padrões funcionais, favorecendo que a expansão categorial se manifeste em concomitância com a evolução gramatical de itens não-correlativos. Será possível afirmar que uma análise descritiva qualitativa, a partir de um ponto de vista funcionalista, favoreceria o reconhecimento das semelhanças sintáticas e permitiria evidenciar que um mesmo processo atua para cumprir funções em graus diversos de gramaticalização?  O receio que surge da resposta positiva a essa questão surge então, justamente porque, debaixo do rótulo correlação, verifica-se a existência de conexões muito distintas, o que torna alguns pares mais gramaticalizados do que outros. As categorias semântico-cognitivas responsáveis por acionar o gatilho da gramaticalização em Modolo (2005) são foco, inclusão, quantidade e intensidade, e essa descoberta pode auxiliar esta nova incursão com relação a outros pares. Naquele trabalho, Modolo afirma que as correlações: a) aditiva, notamos a quebra da focalização pelo item não e adição na segunda sentença (ex.: Essa menina não só toca como também dança); b) alternativa, notamos que uma "dupla focalização" pode dirigir a leitura (ex.: Nem você nem sua gangue vai conseguir algo por aqui; Ou você se comporta ou eu te mando para o diretor; Quer chova quer faça sol, o jogo vai prosseguir; Eu sempre como bem, seja em casa seja em algum restaurante; Ela ora trabalha como louca, ora fica só vendo televisão); c) comparativa, notamos que a intensificação e a quantificação orientam a leitura (ex.: Minha mulher trabalha tanto quanto eu; Quanto mais eu trabalho, menos (eu) realizo);  e d) consecutiva, em que notamos que a intensificação é o efeito da leitura (ex: Comeu tanto que passou mal). A hipótese para essa distinção comportamental assenta-se, por um lado, no fato de que pelo menos duas fontes alimentam as alterações lexicais aqui das correlatas: a integração dos itens em determinados domínios cognitivos, tais como “corpo”, “visão”, “espaço”, “movimento” (hipótese mentalista) e, por outro lado, nas necessidades pragmáticas que repelem a redundância da informação, o que surte efeito na aproximação de sintagmas originariamente distantes (hipótese sociocognitivista). Haveria, portanto, um gatilho cognitivo e um gatilho pragmático para as correlatas.