CONTATO LINGUÍSTICO E LÍNGUAS CRIOULAS

MESA REDONDA: CONTATO LINGUÍSTICO E LÍNGUAS CRIOULAS
Coordenador: Gabriel Antunes de Araújo (USP)

O papel da nativização na formação das línguas crioulas
Dante Lucchesi, Universidade Federal da Bahia

A hipótese do Bioprograma da Linguagem de Derek Bickerton (1981; 1984) teve um grande impacto na crioulística na década de 1980. Segundo essa teoria, as crianças nascidas na situação de contato desempenhariam um papel crucial na formação das línguas crioulas, pois receberiam como input para aquisição de sua língua materna um modelo altamente defectivo de segunda língua (o jargão ou pré-pidgin) e, acionando os dispositivos da faculdade inata da linguagem, procederiam à reestruturação gramatical da língua crioula. Porém, a partir da década de 1990, cresceram no campo os questionamentos à hipótese de Bickerton, não obstante os seus esforços para refinar sua teoria (cf. BICKERTON, 1999).
Com isso, ganhou espaço a visão de que os adultos falantes das línguas do substrato é que desempenhariam o papel principal na formação da variedade linguística que se forma na situação de contato massivo, radical e abrupto, transferindo os mecanismos gramaticais de sua(s) língua(s) nativas, no processo de pidginização/crioulização (LUMSDEN, 1999; e SIEGEL, 2008, entre outros).
Apesar dos problemas da Hipótese do Bioprograma, ela tem o mérito dar conta das características que são gerais às línguas crioulas, independentemente da composição do conjunto de línguas que concorreram para sua formação; o que a visão particularista da transferência do substrato é incapaz de fazer. Nesse sentido, será apresentada uma proposição que visa a integrar a transferência do substrato e o processo de nativização para explicar a gênese das línguas crioulas.
Essencialmente, o que será postulado é que os elementos gramaticais podem surgir no processo de transferência do substrato, mas, no plano da fala dos adultos, mantêm-se em uma situação instável e de muita variação, e só são efetivamente gramaticalizados quando integrados no processo de aquisição da língua materna das crianças que nascem na situação do contato. A seleção e o processamento que acontece na nativização do pidgin instável ou pré-pidgin guiados pelos princípios da Gramática Universal seriam responsáveis pela definição das características mais gerais das línguas crioulas.
Referências
BICKERTON, Derek. Roots of language. Ann Arbor: Karoma, 1981.
BICKERTON, Derek. The Language Bioprogram Hypothesis. Behavioural and Brain Sciences, Cambridge, n.7, 1984, p.173-203.
BICKERTON, Derek. How to acquire language without positive evidence: what acquisitionists can learn from Creoles? In: DEGRAFF, Michel (Ed.). Language creation and language change: creolization, diachrony, and development. Cambridge: The MIT Press, 1999. p.49-74.
LUMSDEN, John S. Language acquisition and creolization. In: DEGRAFF, Michel (Ed.). Language creation and language change: creolization, diachrony, and development. Cambridge: The MIT Press, 1999a. p.129-157.
SIEGEL, Jeff (2008). The Emergence of Pidgin and Creole Languages. Oxford: Oxford University Press.


Os crioulos do Golfo da Guiné: um estudo de caso de reconstrução sintáctica
Tjerk Hagemeijer, Universidade de Lisboa

Como a vasta maioria dos autores, assumimos que as quatro línguas crioulas do Golfo da Guiné (CGG) de base lexical portuguesa, faladas nas ilhas de S. Tomé, Príncipe e Ano Bom, descendem de um tronco comum, uma proto-língua (o proto-crioulo do Golfo da Guiné - PCGG) que começou a surgir na ilha de S. Tomé a partir de finais do século XV, fruto do contacto entre o português e um conjunto de línguas africanas continentais da região do delta do Níger e do Congo/Angola.
Os CGG contemporâneos não são mutuamente inteligíveis, o que se deve sobretudo a diferenças lexicais e fonológicas, mas partilham um grande número de traços e apresentam uma tipologia mais próxima das línguas do delta do Níger, que constituem o estrato africano mais antigo e decisivo na formação do PCGG.
Nesta comunicação, propomo-nos fornecer um contributo para a reconstrução da sintaxe do PCGG recorrendo a uma comparação detalhada de um conjunto de estruturas sintácticas, tais como a ordem de palavras (SN e SV), a negação frásica e a serialização verbal.
Embora a reconstrução sintáctica no quadro do Método Comparativo tem sido alvo de críticas, os CGG oferecem a vantagem de constituir uma família linguística jovem. Assim, a relação genética é já inequivocamente estabelecida através do léxico e da (morfo-)fonologia, onde se conta com um elevado número de cognatos e de correspondências. Neste quadro, a sintaxe pode ser aplicada como um instrumento adicional no estabelecimento de isoglossas que permitam avaliar a ramificação do PCGG no tempo e no espaço.
Cabe-nos aqui, em especial, detectar e isolar padrões de inovação e arcaismos sintácticos, bem como interpretar a direccionalidade da mudança sintáctica, como por exemplo o ciclo de Jespersen no domínio da negação frásica. Prevê-se que os resultados obtidos com esta abordagem contribuam para a validação ou a formulação de novas hipóteses  sobre a estrutura genealógica dos CGG.

 

O desenvolvimento da representação aspectual e temporal num dialeto produto do contato linguísistico: o afro-português dos tongas de São Tomé

Alan Baxter, Universidade Federal da Bahia

Este trabalho investiga a representação temporal e aspectual (T-A) no português de descendentes de trabalhadores africanos da roça Monte Café, na ilha de São Tomé. A partir do final do século XIX, e durante a primeira metade do século XX, os antepassados desta comunidade, falantes de umbundo, transmitiram para sucessivas gerações diversos aspectos do seu português L2 de contato. Num corpus recolhido em 1998 e 2000, que inclui falantes de português L1 da primeira geração nascida em São Tomé, estuda-se a variação no uso da flexão T-A, que apontam para desenvolvimentos divergentes nesse sistema relativamente ao português europeu.
Os exemplos seguintes apresentam uma das tendências mais notáveis na fala das primeiras gerações: um evento passado representado em parte por formas parcialmente derivadas do presente de indicativo e subjuntivo do português:

(1)    Saiu ãla mesimo. (…).. Nosso aqui nõ sabe; nosso tendeu só brango dise “Anda fechare porta…!”
‘(a revolta de 1953) saiu de lá mesmo …(…).. nós aqui não sabíamos; só entendemos quando o branco disse “Anda a fechar as portas…!”.’

(2)   Tempo zente coma cumida, cuzinha ni carudero grande. Cuzinha, pese ponha azete, ponha ni fogo.
‘Antigamente quando a gente comía, cozinhava-se na caldeira grande. Cozinhava-se, peixe punha-se azeite, punha-se no fogo’

Por meio de uma análise quantitativa, investiga-se o condicionamento da variação T-A por variáveis linguísticas tipicamente envolvidas nos processos de aquisição L1 e L2. São centrais a avaliação dos efeitos do aspecto lexical e a saliência morfofonológica das flexões de T-A e número. A discussão teórica é orientada fundamentalmente pela Hipótese do Aspecto (Andersen 1990, 2002; Housen 2002; Rohde 2002), a Hipótese do Prototipo (Li et al., 2000; Shirai & Andersen 1995; Shirai 2002) e as perspectivas de Croft (2009) e Clements (2008) sobre a capacidade das frequências de determinadas formas no input para orientar a aquisição e desenvolvimento sistémico. Os resultados da análise são relevantes para a compreensão das dimensões dos sistemas T-A configurados em situações de contato, incluíndo a crioulização do português e a formação de variedades como o dialeto de Helvécia (Bahia, Brasil).
 

Léxico ibérico e neerlandês em três textos em papiamentu clássico
Gabriel Antunes de Araújo, USP/CNPq

Neste trabalho, apresentarei a edição de três dos primeiros documentos impressos em papiamentu clássico (PC): o Prefecto Apostolico di Curacao na Cristian di su mision (1833) e o Catecismo Corticu (1837), ambos por M. J. Niewindt, e o Kamiena di Kroes (1850), por J. J. Putman.
Meu primeiro objetivo é demonstrar que, embora escritos por dois religiosos holandeses contemporâneos, os textos apresentam variações significativas que sugerem uma busca por um padrão ortográfico nos primórdios da escrita do papiamentu.
Contudo, esses padrões são divergentes: o Prefecto Apostolico e o Catecismo possuem uma ortografia etimológica, hispanicizada, ao passo que o Kamiena revela uma influência da ortografia do neerlandês.
Entretanto, defenderei que, embora houvesse influência das ortografias espanhola e neerlandesa, ambos os autores tentaram criar sistemas ortográficos únicos para o PC, lançando as bases para os modelos que culminariam na padronização oficial da língua no último quartel do século XX.
Mostrarei que o léxico dos três textos em questão é principalmente ibérico e contém um número irrelevante de itens de origem neerlandesa. Isso sugere que a influência da religião católica no papiamentu é também uma influência linguística.
Embora, o papiamentu fosse a língua veicular das três maiores comunidades de Curaçao (protestantes, judeus e escravos), o papiamentu (como língua de escravos) se associa, assim, à religião católica (como religião de escravos).